EUR-Lex -  61990CJ0054 - PT
Karar Dilini Çevir:
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RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA
apresentado no processo C-54/90 ( *1 )
I — Âmbito jurídico do litígio
Nos termos do artigo 12.° do Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades das Comunidades Europeias,
«no território de cada Estado-membro e independentemente da sua nacionalidade, os funcionarios e outros agentes das Comunidades
a)
gozam de imunidade de jurisdição no que diz respeito aos actos por eles praticados na sua qualidade oficial, incluindo as suas palavras e escritos, sem prejuízo da aplicação das disposições dos tratados relativas, por um lado, às normas sobre a responsabilidade dos funcionários e agentes perante as Comunidades e, por outro, à competência do Tribunal para decidir sobre os litígios entre as Comunidades e os seus funcionários e outros agentes. Continuarão a beneficiar desta imunidade após a cessação das suas funções,
...»
Por outro lado, o primeiro parágrafo do artigo 19.° do Estatuto dos Funcionários dispõe:
«O funcionário não pode depor nem prestar declarações em juízo, seja a que título for, sobre factos de que teve conhecimento por causa das suas funções, sem autorização da entidade competente para proceder a nomeações. Esta autorização só pode ser recusada se os interesses das Comunidades o exigirem ou se a recusa não for susceptível de implicar consequências penais para o funcionário em causa. O funcionário continua sujeito a esta obrigação mesmo depois das suas funções terem cessado.»
Foi aberto um processo de adjudicação através do Regulamento (CEE) n.° 2539/87 da Comissão, de 24 de Agosto de 1987, relativo à quantidade de carne de bovino de alta qualidade que pode ser importada dos Estados Unidos da América e do Canadá no àmbito do regime previsto pelo Regulamento (CEE) n.° 3928/86 (JO L 241, p. 6), que procedeu à abertura de um contingente pautal comunitário.
O artigo l.° do Regulamento n.° 2539/87 prescreve :
«Os pedidos de certificados podem ser apresentados, em conformidade com o artigo 12.° do Regulamento (CEE) n.° 2377/80, durante os dez primeiros dias do mês de Setembro de 1987 para uma quantidade global de 4617 toneladas de carne de bovino originária e em proveniência dos Estados Unidos da América e do Canadá.»
Posteriormente, a Comissão entendeu que se tinha revelado necessário reduzir de uma certa percentagem as quantidades pedidas. O Regulamento (CEE) n.° 2806/87 da Comissão, de 18 de Setembro de 1987, relativo à entrega de certificados de importação para carne de bovino de alta qualidade, fresca, refrigerada ou congelada (JO L 268, p. 59), dispôs, pois, no seu artigo 1.°:
«Todos os pedidos de certificados de importação apresentados para o mês de Setembro de 1987... serão satisfeitos até ao limite de 0,2425 % da quantidade pedida.
No caso de um pedido exceder a quantidade de 4617 toneladas tornada disponível pelo Regulamento (CEE) n.° 2539/87, esse pedido só será tido em conta até ao limite dessa quantidade.»
A questão de saber se, no âmbito do Regulamento n.° 2539/87, um operador podia pedir certificados para uma quantidade superior à quantidade disponível (4617 toneladas) foi suscitada pelo Reino Unido aquando da reunião do comité de gestão da carne de bovino de 11 de Setembro de 1987. Segundo a acta sumária desta reunião, apresentada pela Comissão no processo 354/87 ( 1 ), «os serviços da Comissão responderam que o artigo 12.° do Regulamento (CEE) n.° 2377/80 ( 2 ), segundo a sua redacção, não prevê qualquer quantidade máxima. No entanto, a questão é dúbia devendo ser objecto de análise».
II — Matéria de facto e tramitação processual
Em 9 de Setembro de 1987, a recorrente apresentou um pedido de certificado para 80000 toneladas e, seguidamente, em 10 de Setembro, um pedido que tinha por objecto 240000 toneladas.
Em 11 de Setembro de 1987, o «Produktschap voor Vee en Vlees» (a seguir «Prouktschap»), organisno neerlandês que gere a recepção dos pedidos de certificados e a emissão dos certificados de importação, comunicou à Comissão o montante global dos pedidos apresentados nos Países Baixos. Em 15 de Setembro de 1987, a Comissão informou-lhe que um pedido de certificado devia ter por objecto uma quantidade global que não excedesse a quantidade global disponível no momento da apresentação do pedido. A Comissão acrescentou que, embora já não existisse um limite específico no âmbito do regime aplicável após 1982, resultava das circunstâncias que referia, bem como do teor do Regulamento n.° 2539/87, que um pedido de certificado não podia em caso algum exceder a quantidade de 4617 toneladas disponível no início do mês em curso.
O Produktschap respondeu que essa interpretação do Regulamento n.° 2539/87 era contrária a certas decisões tomadas anteriormente, designadamente aquando da reunião de 11 de Setembro de 1987 do comité de gestão, e causaria graves problemas às empresas interessadas dos Países Baixos. Todavia, pelo seu Regulamento n.° 2806/87, a Comissão fixou um limite máximo para os pedidos de certificados de importação, reduzindo desse modo, de forma proporcional, as quantidades pedidas.
Devido à introdução desse limite, a recorrente apenas obteve um certificado para 0,2425% das 4617 toneladas, pelo que apenas foi autorizada a importar 11,196 toneladas.
A recorrente interpôs recurso de anulação desse regulamento, a que foi negado provimento pelo acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de Novembro de 1990, já referido. O Tribunal considerou, designadamente, que a fixação de um limite máximo aplicável aos pedidos de certificados já apresentados não era ilegal, na medida em que não constituía uma nova regra, mas uma simples precisão da regulamentação comunitária já existente, de que era uma consequência necessária.
Em 2 de Novembro de 1989, a recorrente, por outro lado, requereu no arrondissementsrechtbank te s'-Gravenhage uma inquirição antecipada de testemunhas de modo a poder eventualmente intentar uma acção de indemnização contra o Produktschap pelo dano que a recorrente considera ter sofrido em razão do indeferimento parcial dos seus pedidos de certificados de importação. Com efeito, terá apresentado os pedidos de certificados de importação que excediam o contingente disponível com base nas informações que lhe foram espontaneamente fornecidas pelo Produktschap.
Este respondeu que, por intermédio de um dos seus funcionários, a Comissão lhe tinha afirmado que o regime de certificados de importação não fixava um limite máximo para os pedidos de certificados. Terá sido essa a razão da apresentação de pedidos de certificados para quantidades que excediam o contingente disponível.
Por carta de 29 de Novembro de 1989, a recorrente pediu à Comissão que concedesse ao interessado a autorização para testemunhar em juízo que é expressamente exigida pelo artigo 19.° do Estatuto dos Funcionários das Comunidades Europeias.
A recorrente informou a Comissão em 14 de Dezembro de 1989 de que uma inquirição de testemunhas, de cujo rol constava o funcionário da Comissão em questão, tinha sido ordenada por despacho do juiz nacional proferido em 11 de Dezembro de 1989.
Em 11 de Janeiro de 1990, a Comissão recusou ao funcionário essa autorização, com fundamento em que o processo C-354/87, já referido, que tinha por objecto os mesmos factos, estava nesse momento pendente no Tribunal de Justiça e em que as questões sobre as quais se pedia o seu testemunho receberiam no âmbito desse processo uma resposta oficial da Comissão, por intermédio da instância habilitada (serviço jurídico, agente da Comissão).
Por carta de 12 de Janeiro de 1990, foi transmitida à recorrente cópia dessa nota de recusa.
Em 16 de Janeiro de 1990, o juiz competente ouviu quatro outras testemunhas que tinham sido notificadas para comparecer, que afirmaram, em resposta a certas questões do Produktschap, que o funcionário da Comissão tinha, antes do termo do prazo para a apresentação dos pedidos de certificado, declarado expressamente, em diversas ocasiões e sem reserva, que as quantidades pedidas podiam exceder as quantidades disponíveis.
Em 7 de Março de 1990, a recorrente interpôs no Tribunal de Justiça o presente recurso que tem por objecto a anulação da recusa de autorizar a testemunhar o funcionário em questão.
Com base no relatório preliminar do juiz-relator, ouvido o advogado-geral, o Tribunal deu início à fase oral do processo sem instrução prévia.
Por despacho de 15 de Maio de 1991, o Tribunal negou provimento aos pedidos que a Comissão apresentou no sentido de serem retirados dos autos certos documentos ou partes de documentos.
III — Pedidos das partes
A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

anular a decisão da Comissão de 12 de Janeiro de 1990;

condenar a Comissão nas despesas.
A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

negar provimento ao recurso;

condenar a recorrente nas despesas.
IV — Fundamentos e argumentos das partes
1. Admissibilidade
a) O objecto do litígio
A Comissão contesta afirmando que o recurso tem por objecto a anulação da «decisão da Comissão» que foi transmitida à recorrente na carta de 12 de Janeiro de 1990 ou no seu anexo.
A recorrente terá omitido indicar qual é a decisão impugnada, em violação do disposto na alínea c) do n.° 1 do artigo 38.° do Regulamento de Processo.
Na medida em que o recurso vise a carta dirigida à recorrente pelo director-geral da Agricultura, esta constitui uma simples comunicação da Comissão à recorrente; a sua anulação, que não atingirá a decisão de indeferimento em si mesma, que tem como destinatário o funcionário, não produzirá qualquer efeito jurídico.
Caso se entenda que o recurso está dirigido contra a recusa da autorização para testemunhar, esta constitui uma decisão da autoridade investida do poder de nomeação que tem como destinatário o funcionário em questão. Esta decisão é de natureza puramente interna e, portanto, não produz efeitos em relação à recorrente.
A recorrente considera esta distinção artificial. A decisão de recusa da autoridade investida do poder de nomeação, que foi tomada nos termos do artigo 19.° do Estatuto, em 11 de Janeiro de 1990, foi notificada à recorrente por carta de 12 de Janeiro de 1990. Esta carta remete para a nota da referida autoridade. Os efeitos jurídicos produzidos em relação à recorrente resultam da notificação da decisão de recusa contida na carta de 12 de Janeiro de 1990.
A petição é suficientemente clara. A alínea c) do n.° 1 do artigo 38.° do Regulamento de Processo tem por objecto assegurar que a parte contrária e o Tribunal de Justiça conheçam suficientemente, do ponto de vista jurídico, contra o que é dirigido o referido recurso. Ora, a Comissão não parece ter dificuldades a este respeito.
b) O destinatário da decisão
Segundo a Comissão, na medida em que o recurso deva ser entendido como estando dirigido contra a decisão da autoridade investida do poder de nomeação, o seu destinatário é apenas o funcionário chamado a testemunhar em juízo e nunca a recorrente.
A recorrente também não pode afirmar que a referida decisão o afecta directa e individualmente.
A recorrente considera que o teor do artigo 19.° do Estatuto não exclui de modo algum que um pedido destinado a obter a autorização para um funcionário testemunhar possa provir de um terceiro directamente interessado. Ora, concretamente, foi a recorrente que tomou a iniciativa desse pedido. A decisão da Comissão, tomada com fundamento no artigo 19.° do Estatuto, constitui uma resposta directa ao correspondente pedido da recorrente, que, portanto, é efectivamente a destinatária, na acepção do artigo 173.° do Tratado CEE, da decisão de recusa em conceder autorização.
Para decidir quem deve suportar o risco das informações prestadas pela Comissão caso essas informações se revelem inexactas, o. funcionário da Comissão em questão deve ser ouvido acerca do que lhe foi solicitado e dito pelo Produktschap e sobre o que o interessado terá respondido ao Produktschap.
2. O mérito
A recorrente considera que a recusa de autorização é ilegal.
1)
O funcionário interessado foi chamado a testemunhar a fim de se verificar se existem razões suficientes que determinem a responsabilidade civil do Produktschap. Ele não foi convidado a depor perante um órgão jurisdicional nacional relativamente às afirmações que tenha feito em razão das suas funções, a responder pelas informações prestadas ou a fornecer uma interpretação da regulamentação comunitária referente à carne de bovino, mas sim a indicar que informações prestou ao Produktschap, quando e quantas vezes o fez e se sabia se essas informações seriam comunicadas aos interessados.
Tendo prestado essas informações ao Produktschap, a pedido deste, no âmbito da gestão da política agrícola comum, o funcionário interessado não terá violado o seu dever de reserva na acepção do artigo 214.° do Tratado e do artigo 17.° do Estatuto. Portanto, essas informações não podem ser consideradas, tendo em conta o disposto no artigo 19.° do referido Estatuto, como informações que não possam ser reveladas em juízo pelo funcionário nos termos desta última disposição. Um funcionário pode ser ouvido pelo juiz na qualidade de testemunha, nos termos do disposto no artigo 19.°, sobre o que tenha dito a uma ou a várias das partes nos autos, sem com isso violar o dever de reserva a que se refere o artigo 17.°
2)
A autorização para testemunhar apenas podia ser recusada, nos termos do disposto no artigo 19.° do Estatuto, caso o exigissem interesses concretos e não o interesse geral da Comunidade. Portanto, uma referência global ao interesse geral não é suficiente.
Pela expressão «interesses das Comunidades», entendem-se apenas os interesses muito importantes das Comunidades, em particular quando esteja em causa a salvaguarda de carácter secreto das informações confidenciais fornecidas por terceiros à Comunidade ou os seus interesses vitais.
As razões fornecidas pela Comissão são insuficientes e teriam por efeito a tramitação processual e o estabelecimento da verdade, nos autos nacionais em que directa ou indirectamente esteja implicada a Comissão, ficarem dependentes da sua «estratégia processual».
De resto, a aplicação do artigo 19.° do Estatuto de modo algum impede que o funcionário compareça à audição para que foi devidamente convocado. O funcionário poderá então, caso certas questões o exijam, invocar a alínea b) do n.° 2 do artigo 191.° do Código de Processo Civil neerlandês, relativa à dispensa da obrigação de depor como testemunha em razão de uma obrigação de segredo.
Na medida em que seja correctamente que a autoridade investida do poder de nomeação recuse — nesse caso — conceder autorização para responder às questões invocando os interesses das Comunidades, o juiz neerlandês deverá então aplicar o disposto na alínea b) do n.° 2 do artigo 191.°, eventualmente, após ter solicitado ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado, que se pronuncie sobre a questão de saber se é válido a Comissão invocar no caso concreto os interesses das Comunidades.
A interpretação do artigo 19.° do Estatuto incumbe seguramente apenas ao Tribunal de Justiça e a interpretação uniforme do direito comunitário não é posta em causa caso o funcionário seja ouvido como testemunha no processo nacional.
3)
Resulta do teor da segunda frase do artigo 19.° que a autorização pedida só pode ser recusada se a recusa não for susceptível de implicar consequências penais para o funcionário em causa.
Ora, se o funcionário se recusar a comparecer como testemunha devido à recusa da Comissão, sujeita-se em direito neerlandês a ser detido, o que para si tem as mesmas consequências que a privação da liberdade na acepção penal. A integridade e a liberdade do funcionário prevalecem caso a recusa em depor possa ter para ele consequências penais ou consequências que devam ser assimiladas a consequências penais.
A alínea a) do artigo 12.° do Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades das Comunidades Europeias apenas exonera os funcionários dos procedimentos penais nacionais em relação ao que tenham feito, dito ou escrito no âmbito das suas funções oficiais. Essa questão não está aqui em causa: o funcionário em questão não foi ameaçado de um procedimento penal em razão do que tenha dito ao Produktschap.
A Comissão entende que a sua recusa em autorizar se justifica por uma consideração de interesse geral e certas razões específicas.
a)
O artigo 19.° do Estatuto diz respeito às «afirmações» feitas pelo funcionário «em razão das suas funções», ou seja, ao conjunto das actividades que se prendem com a função, ou a tudo o que o funcionário tenha ou não feito no exercício das suas funções, incluindo as declarações orais ou escritas que tenha prestado dentro ou fora da instituição.
b)
A defesa dos interesses das Comunidades visados no artigo 19.° do Estatuto implica para a Comissão uma ponderação entre o bom funcionamento da política agrícola comum e o interesse de uma inquirição provisória de testemunhas.
A aplicação descentralizada da regulamentação agrícola origina para cada uma das instâncias comunitárias e nacionais numerosos problemas práticos que a Comissão tenta solucionar criando as condições para uma boa colaboração entre os seus funcionários e as instâncias nacionais. Numerosos problemas são resolvidos de modo informal por telefone ou por telex.
Nessas condições, as tomadas de posição de um funcionário não podem ser sempre consideradas como tomadas de posição oficiais da Comissão. As trocas de cartas ou de telex e as comunicações telefónicas entre funcionários e instâncias nacionais, no que se refere à aplicação da regulamentação agrícola, não vinculam oficialmente a Comissão ( 3 ).
A inquirição provisória pedida pela recorrente não tem por objecto a salvaguarda das provas, mas verificar as hipóteses de sucesso de uma acção a intentar contra o Produktschap. Ora, mesmo quando se demonstre, com base na audição do funcionário em causa, que o Produktschap não terá declarado mais do que aquilo que o funcionário em questão lhe afirmou, isso em nada alterará o facto de as declarações dos funcionários da Comissão não terem qualquer poder vinculativo. O Produktschap age nos termos da sua própria responsabilidade, mesmo quando se baseie nas declarações feitas pelos funcionários da Comissão.
Se todas as comunicações prestadas fossem qualificadas de actos susceptíveis de recurso ou se todos os funcionários que forneçam informações a uma instância nacional pudessem seguidamente ser chamados a responder por essas informações perante um órgão jurisdicional nacional, a Comissão seria obrigada a alterar o seu modo de actuar, com o correspondente risco de se comprometer a gestão eficaz das organizações comuns de mercados agrícolas.
Na realidade, o funcionário seria interrogado sobre a sua própria interpretação do regulamento em causa ou sobre a interpretação que, em seu entender, o Produktschap devia adoptar. A Comissão não pode permitir que um dos seus funcionários seja desse modo obrigado a fornecer no decurso da sua deposição uma interpretação da regulamentação da Comissão. Nem a Comissão nem os seus funcionários estão habilitados a fornecer uma interpretação legítima e vinculativa de um regulamento. Apenas o Tribunal de Justiça está habilitado a fazê-lo.
A recusa da Comissão não tem nem podia ter qualquer influência, seja de que modo for, sobre o bom andamento do processo no órgão jurisdicional nacional, fosse o regulamento anulado ou não pelo Tribunal de Justiça no processo C-354/87, já referido:

na primeira hipótese, a deposição já não terá qualquer importância e a recorrente poderá eventualmente invocar o disposto no segundo parágrafo do artigo 215.° do Tratado CEE;

na segunda hipótese, apenas restará à recorrente a possibilidade de accionar o Produktschap. Caso o Produktschap seja julgado responsável, poderá então ele ou o Estado neerlandês accionar a Comissão.
Nunca houve qualquer contacto entre a recorrente e a Comissão: a recorrente terá «ouvido dizer». Para a Comissão, é óbvio que um funcionário não pode ser chamado a testemunhar com base no que se «ouviu dizer».
c)
O direito neerlandês não comporta sanção penal para os casos da recusa em testemunhar. Acresce que, se o depoimento de um funcionário da Comissão é efectivamente contrário ao interesse comunitário, a questão das eventuais consequências penais não tem qualquer importância. Com efeito, em tal caso, o direito comunitário, que serve de base à recusa legítima em conceder autorização para testemunhar, tem primazia sobre o direito nacional e o funcionário interessado não pode ser objecto de procedimento penal. Esta imunidade penal do funcionário está expressamente prevista na alínea a) do artigo 12.° do Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades das Comunidades Europeias.
A circunstância do funcionário interessado poder eventualmente invocar, em conformidade com a legislação neerlandesa, o direito de ser dispensado de testemunhar,.em nada afecta a legitimidade da decisão tomada pela Comissão. Com feito, a posição do funcionário comunitário face a um órgão jurisdicional nacional e ao processo nacional, na medida era que se trate do exercício das suas funções, é definida pelo direito comunitário. Esta á a única forma de se garantir uma defesa uniforme do interesse comunitário.
J. L. Murray
Juiz-relator
( *1 ) Língua do processo: neerlandês.
( 1 ) Acórdão de 6 de Novembro de 1990, Weddel/Comissäo (Colea., p. I-3847).
( 2 ) Da Comissão de 4 de Setembro de 1980 que estabelece as modalidades especiais de aplicação do regime de certificados de importação e de exportação no sector da carne de bovino (JO L 241, p. 5; EE 03 F19 p. 35).
( 3 ) Acórdãos de 16 de Novembro de 1983, Thyssen/Comissäo (188/82, Recueil, p. 3721), de 27 de Março de 1980, Su-crimex/Comissäo (133/79, Recueil, p. 1299), e de 10 de Junho de 1982, Interagra/Comissïo (217/81, Recueil, p. 2233).

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
18 de Fevereiro de 1992 ( *1 )
No processo C-54/90,
Weddel & Co. BV, sociedade de direito neerlandês, com sede em Roterdão (Países Baixos), representada por G. van der Wal, advogado no Hoge Raad der Nederlanden, com domicílio escolhido no Luxemburgo no escritório do advogado Aloyse May, 31, Grand-Rue,
recorrente,
contra
Comissão das Comunidades Europeias, representada inicialmente por R. Barents e seguidamente por P. van Nuffel, membros do seu Serviço Jurídico, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de Roberto Hayder, representante do Serviço Jurídico, Centre Wagner, kirchberg,
recorrida,
que tem por objecto um recurso de anulação da recusa da Comissão em autorizar um dos seus funcionários a testemunhar num processo judicial nacional,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
composto por: O. Due, presidente, Sir Gordon Slynn, R. Joliét e P. J. G. Kapteyn, presidentes de secção, J. F. Mancini, C. N. Kakouris, G. C. Rodríguez Iglesias, M. Diez de Velasco e J. L. Murray, juízes,
advogado-geral: W. Van Gerven
secretário: J. A. Pompe, secretário adjunto
visto o relatório para audiência, tal como foi alterado após a fase oral do processo,
ouvidas as alegações das partes na audiência de 17 de Outubro de 1991,
ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 28 de Novembro de 1991,
profere o presente
Acórdão

1
Por petição entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 7 de Março de 1990, a sociedade Weddel & Co. BV requereu, nos termos do segundo parágrafo do artigo 173.o do Tratado CEE, a anulação da recusa da Comissão, comunicada à recorrente por carta de 12 de Janeiro de 1990, em autorizar um dos seus funcionários a testemunhar num processo judicial nacional.
Quanto aos antecedentes do litígio

2
Foi aberto um processo de adjudicação através do Regulamento (CEE) n.o 2539/87 da Comissão, de 24 de Agosto de 1987, relativo à quantidade de carne de bovino de alta qualidade que pode ser importada dos Estados Unidos da América e do Canadá no âmbito do regime previsto pelo Regulamento (CEE) n.o 3928/86 (JO L 241, p. 6). O artigo l.o desse regulamento previa que podiam ser apresentados pedidos de certificados de importação para uma quantidade global de 4617 toneladas.

3
A recorrente apresentou, em 9 e 10 de Setembro de 1987, pedidos para um total de 320000 toneladas de carne de bovino ao «Produktschap voor Vee en Vlees» (a seguir «Produktschap»), organismo neerlandês responsável pela emissão dos certificados de importação.

4
Após ter recebido do Produktschap uma comunicação sobre o montante global dos pedidos apresentados nos Países Baixos, a Comissão informou a esse organismo, em 15 de Setembro de 1987, que, tendo em conta as circunstâncias e o teor do Regulamento n.o 2539/87, cada um dos pedidos de certificado devia ter por objecto uma quantidade global que não exceda a quantidade global disponível no momento da apresentação do pedido.

5
Efectivamente, a Comissão decidiu, através do Regulamento (CEE) n.o 2806/87, de 18 de Setembro de 1987, relativo à entrega de certificados de importação para carne de bovino de alta qualidade, fresca, refrigerada ou congelada (JO L 268, p. 59), que todos os pedidos de certificado só seriam satisfeitos até ao limite de 0,2425 % da quantidade pedida e que os pedidos que excedessem a quantidade disponível de 4617 toneladas apenas seriam tidos em conta até ao limite dessa quantidade.

6
Devido à fixação de um limite máximo para os pedidos, a recorrente apenas obteve um certificado de importação para 0,2425 % das 4617 toneladas e, assim, apenas foi autorizada a importar 11,196 toneladas.

7
A recorrente interpôs recurso de anulação do Regulamento n.o 2806/87, a que o Tribunal de Justiça negou provimento (ver acórdão de 6 de Novembro de 1990, Weddel/Comissão, C-354/87, Colect., p. I-3847).

8
A recorrente apresentou ainda, em 2 de Novembro de 1989, no arrondissementsrechtbank te 's-Gravenhage um requerimento pedindo a inquirição provisória de testemunhas, na acepção do artigo 214.o do Código de Processo Civil neerlandês, a fim de avaliar as suas possibilidades de obter em justiça a indemnização por parte do Produktschap do prejuízo que considera ter sofrido devido ao indeferimento dos seus pedidos de certificados que excediam a quantidade disponível. Com efeito, a recorrente sustenta que o Produktschap lhe terá assegurado não existir qualquer limite para os pedidos, tendo sido desse modo incitada a apresentar pedidos que excediam o contingente disponível. O Produktschap afirma, por sua vez, que um funcionário da Comissão lhe assegurou oficiosamente não existir qualquer limite para os pedidos.

9
Por carta de 29 de Novembro de 1989, a recorrente pediu à Comissão que autorizasse o funcionário em questão, em conformidade com o disposto no artigo 19.o do Estatuto dos Funcionários das Comunidades Europeias (a seguir «Estatuto dos Funcionários»), a depor como testemunha na inquirição provisória sobre as informações que terá prestado ao Produktschap.

10
A recorrente informou a Comissão, por carta de 14 de Dezembro de 1989, que o juiz nacional tinha ordenado uma inquirição provisória de testemunhas, entre as quais o funcionário em causa, e que a recorrente tinha a intenção de notificar, por oficial de diligências, esse funcionário para comparecer nessa inquirição.

11
Por nota interna de 11 de Janeiro de 1990, comunicada ao seu funcionário, a Comissão recusou a este último autorização para testemunhar com o seguinte fundamento:
«... uma vez que um processo que tem por objecto os mesmos factos está pendente no Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (Weddel/Comissão), as questões em relação às quais se pede o seu testemunho receberão nesse âmbito resposta oficial da Comissão, por intermédio da instância habilitada (serviço jurídico, agente da Comissão)».

12
A Comissão informou a recorrente dessa recusa por carta de 12 de Janeiro de 1990 que continha em anexo uma cópia da referida nota interna.

13
Em 16 de Janeiro de 1990, o juiz competente ouviu as quatro outras testemunhas que tinham sido notificadas para comparecer, que afirmaram, em resposta a certas questões do Produktschap, que o funcionário da Comissão tinha, antes do termo do prazo para a apresentação dos pedidos de certificado, declarado expressamente, por diversas vezes e sem reserva, que as quantidades pedidas podiam exceder as quantidades disponíveis.

14
Para mais ampla exposição do enquadramento jurídico e da matéria de facto do ;itígio, da tramitação processual e dos fundamentos e argumentos das partes, remete-se para o relatório para audiência. Esses elementos dos autos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.
Quanto à admissibilidade do recurso

15
Segundo a Comissão, o recurso é inadmissível por não preencher o requisito da indicação do objecto do litígio, que impõe a alínea c) do n.o 1 do artigo 38.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. Com efeito, não se terá precisado se o acto impugnado é a recusa de autorização para testemunhar comunicada ao funcionário ou a carta dirigida à recorrente.

16
Esta excepção não deve ser acolhida. A petição é dirigida, segundo os seus próprios termos, contra a decisão de 12 de Janeiro de 1990. A Comissão podia, pois, identificar sem dificuldade o objecto do litígio como versando sobre o acto por meio do qual a Comissão se recusou a deferir o pedido que lhe foi feito pela recorrente, ou seja, autorizar o seu funcionário a testemunhar.

17
Quanto aos requisitos do segundo parágrafo do artigo 173.o do Tratado, há que considerar, por um lado, que a recorrente era a destinatária da decisão de recusa de 12 de Janeiro de 1990 que lhe foi notificada por carta da mesma data, tomada na sequência do seu pedido de 29 de Novembro de 1989 e, por outro, que o acto em litígio afectou a situação jurídica da recorrente na medida em que teve por efeito obstar a que na inquirição provisória de testemunhas fossem analisados factos que se podiam vir a revelar relevantes para uma eventual acção de indemnização por perdas e danos a propor pela recorrente contra o Produktschap.

18
Por estas razões, o recurso é julgado admissível.
Quanto ao mérito
Quanto ao principal fundamento

19
Com o seu principal fundamento, a recorrente sustenta que foi incorrectamente que a Comissão invocou a aplicabilidade do artigo 19.o do Estatuto dos Funcionários ao caso concreto. Com efeito, esta disposição deve ser interpretada à luz do dever de reserva que o artigo 214.o do Tratado e o artigo 17.o do Estatuto impõem aos funcionários. Esse dever proíbe aos funcionários a comunicação de informações confidenciais obtidas de terceiros ou a comunicação a pessoas não habilitadas a deles ter conhecimento de documentos e informações que não tenham sido tornados públicos. O artigo 19.o do Estatuto apenas seria aplicável às informações cobertas pelo dever de reserva. No âmbito da política agrícola comum, podem ser colocadas aos funcionários da Comissão pelos organismos de intervenção numerosas questões e esses funcionários podem responder a essas questões sem com isso violar o seu dever de reserva. Por conseguinte, as informações ou as respostas desse modo fornecidas não estarão sujeitas ao requisito da autorização prévia do artigo 19.o do Estatuto.

20
Esta interpretação restritiva não resulta do teor do artigo 19.o, já referido, do Estatuto dos Funcionários. Pelo contrário, resulta do teor dessa disposição, nas suas diferentes versões linguísticas, que, quando um funcionário seja, como no presente caso concreto, chamado a testemunhar perante um órgão jurisdicional nacional sobre as informações que tenha ou não comunicado a terceiros na sua qualidade de funcionário, deve para esse efeito obter autorização prévia da sua instituição, sem que a este respeito se tenha que proceder a uma distinção conforme as informações estejam ou não abrangidas pelo dever de reserva.
Quanto ao fondamento a título subsidiário

21
Caso se entenda que o artigo 19.o do Estatuto é aplicável, a recorrente sustenta, a título subsidiário, que a Comissão não demonstrou que os interesses da Comunidade, na acepção dessa disposição, impusessem que fosse negada ao funcionário autorização para testemunhar. A recorrente sustenta ainda que a autorização não podia ser concretamente recusada por a recusa poder implicar consequências penais ou similares para o funcionário em causa.

22
No que se refere ao primeiro ponto, deve assinalar-se que o único argumento da Comissão relativamente aos interesses da Comunidade é o que se refere à boa gestão das organizações comuns de mercados.

23
Há que referir a este respeito que o testemunho solicitado se destinava unicamente a verificar se o funcionário tinha fornecido ao Produktschap uma determinada interpretação de um regulamento comunitário relativo à agricultura.

24
Tal testemunho não é, nas circunstâncias do caso concreto, susceptível de afectar as relações que os serviços da Comissão devem manter com as administrações nacionais nem pode, por conseguinte, comprometer a boa gestão das organizações comuns de mercado.

25
Portanto, foi incorrectamente que a Comissão considerou que os interesses da Comunidade se opunham à concessão, ao seu funcionário, da autorização para testemunhar que a recorrente solicitou.

26
Por conseguinte, deve ser anulada a decisão de recusa de autorização impugnada, sem que haja que analisar se a recusa é susceptível de implicar consequências penais para o funcionário em questão, o que, de resto, também exige o artigo 19.o do Estatuto dos Funcionários.
Quanto às despesas

27
Nos termos do n.o 2 do artigo 69.o do Regulamento de Processo, a parte vencida deve ser condenada nas despesas. Tendo a Comissão sido vencida no essencial dos seus fundamentos, há que condená-la nas despesas.  
Pelos fundamentos expostos,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA
declara e decide:  
1)
A decisão de 12 de Janeiro de 1990 da Comissão que recusou autorização a um dos seus funcionários para testemunhar perante o arrondissementsrechtbank te 's-Gravenhage é anulada.  
2)
A Comissão é condenada nas despesas.  
Due
Slynn
Joliét
Kapteyn
Mancini
Kakouris
Rodríguez Iglesias
Diez de Velasco
Murray
Proferido em audiencia pública no Luxemburgo, em 18 de Fevereiro de 1992.
O secretário
J.-G. Giraud
O presidente
O. Due
( *1 ) Língua do processo: neerlandês.

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